“I. INTRODUÇÃO: Eu poderia gastar um longo tempo descrevendo todos os sentimentos
bons que vieram ao meu espírito ao ser escolhido patrono de uma turma extraordinária
como a de vocês. Mas nós somos – vocês e eu – militantes da revolução da
brevidade. Acreditamos na utopia de que em algum lugar do futuro juristas
falarão menos, escreverão menos e não serão tão apaixonados pela própria voz.
Por isso, em lugar de muitas palavras, basta que vejam o brilho dos meus olhos
e sintam a emoção genuína da minha voz. E ninguém terá dúvida da felicidade
imensa que me proporcionaram. Celebramos esta noite, nessa despedida
provisória, o pacto que unirá nossas vidas para sempre, selado pelos valores
que compartilhamos. É lugar comum dizer-se que a vida vem sem manual de instruções.
Porém, não resisti à tentação – mais que isso, à ilimitada pretensão – de sanar
essa omissão. Relevem a insensatez. Ela é fruto do meu afeto. Por certo,
ninguém vive a vida dos outros. Cada um descobre, ao longo do caminho, as suas
próprias verdades. Vai aqui, ainda assim, no curto espaço de tempo que me
impus, um guia breve com ideias essenciais ligadas à vida e ao Direito. II. A REGRA Nº 1: No nosso primeiro dia de aula eu lhes narrei o multicitado 'caso do arremesso de anão'. Como se lembrarão, em uma localidade
próxima a Paris, uma casa noturna realizava um evento, um torneio no qual os participantes
procuravam atirar um anão, um deficiente físico de baixa altura, à maior
distância possível. O vencedor levava o grande prêmio da noite.
Compreensivelmente horrorizado com a prática, o Prefeito Municipal interditou a
atividade. Após recursos, idas e vindas, o Conselho de Estado francês confirmou
a proibição. Na ocasião, dizia-lhes eu, o Conselho afirmou que se aquele pobre
homem abria mão de sua dignidade humana, deixando-se arremessar como se fora um
objeto e não um sujeito de direitos,
cabia ao Estado intervir para restabelecer a sua dignidade perdida. Em meio ao
assentimento geral, eu observava que a história não havia terminado ainda. E em
seguida, contava que o anão recorrera em todas as instâncias possíveis, chegando
até mesmo à Comissão de Direitos Humanos da ONU, procurando reverter a proibição.
Sustentava ele que não se sentia – o trocadilho é inevitável – diminuído com
aquela prática. Pelo contrário. Pela primeira vez em toda a sua vida ele se
sentia realizado. Tinha um emprego, amigos, ganhava salário e gorjetas, e nunca
fora tão feliz. A decisão do Conselho o obrigava a voltar para o mundo onde
vivia esquecido e invisível. Após eu narrar a segunda parte da história, todos
nos sentíamos divididos em relação a qual seria a solução correta. E ali,
naquele primeiro encontro, nós estabelecemos que para quem escolhia viver no
mundo do Direito esta era a regra nº 1: nunca forme uma opinião sem antes ouvir
os dois lados. III. A REGRA Nº 2: Nós vivemos em um mundo complexo e plural.
Como bem ilustra o nosso exemplo anterior, cada um é feliz à sua maneira. A
vida pode ser vista de múltiplos pontos de observação. Narro-lhes uma história
que li recentemente e que considero uma boa alegoria. Dois amigos estão sentados
em um bar no Alaska, tomando uma cerveja. Começam, como previsível, conversando
sobre mulheres. Depois falam de esportes diversos. E na medida em que a cerveja
acumulava, passam a falar sobre religião. Um deles é ateu. O outro é um homem
religioso. Passam a discutir sobre a existência de Deus. O ateu fala: 'Não
é que eu nunca tenha tentado acreditar, não. Eu tentei. Ainda recentemente. Eu
havia me perdido em uma tempestade de neve em um lugar ermo, comecei a congelar,
percebi que ia morrer ali. Aí, me ajoelhei no chão e disse, bem alto: Deus, se
você existe, me tire dessa situação, salve a minha vida'. Diante de tal
depoimento, o religioso disse: 'Bom, mas você foi salvo, você está aqui,
deveria ter passado a acreditar'. E o ateu responde: 'Nada disso!
Deus não deu nem sinal. A sorte que eu tive é que vinha passando um casal de
esquimós. Eles me resgataram, me aqueceram e me mostraram o caminho de volta. É
a eles que eu devo a minha vida'. Note-se que não há aqui qualquer dúvida
quanto aos fatos, apenas sobre como interpretá-los. Quem está certo? Onde está
a verdade? Na frase feliz da escritora Anais Nin, 'nós não vemos as coisas como
elas são, nós as vemos como nós somos'. Para viver uma vida boa, uma vida
completa, cada um deve procurar o bem, o correto e o justo. Mas sem presunção
ou arrogância. Sem desconsiderar o outro. Aqui a nossa regra nº 2: a verdade
não tem dono. IV. A REGRA Nº 3: Uma vez, um sultão poderoso sonhou que havia
perdido todos os dentes. Intrigado, mandou chamar um sábio que o ajudasse a
interpretar o sonho. O sábio fez um ar sombrio e exclamou: 'Uma desgraça,
Majestade. Os dentes perdidos significam que Vossa Alteza irá assistir a morte
de todos os seus parentes'. Extremamente contrariado, o Sultão mandou aplicar
cem chibatadas no sábio agourento. Em seguida, mandou chamar outro sábio. Este,
ao ouvir o sonho, falou com voz excitada: 'Vejo uma grande felicidade,
Majestade. Vossa Alteza irá viver mais do que todos os seus parentes'.
Exultante com a revelação, o Sultão mandou pagar ao sábio cem moedas de ouro.
Um cortesão que assistira a ambas as cenas vira-se para o segundo sábio e lhe
diz: 'Não consigo entender. Sua resposta foi exatamente igual à do
primeiro sábio. O outro foi castigado e você foi premiado'. Ao que o
segundo sábio respondeu: 'a diferença não está no que eu falei, mas em
como falei.' Pois assim é. Na vida, não basta ter razão: é preciso saber
levar. É possível embrulhar os nossos pontos de vista em papel áspero e com
espinhos, revelando indiferença aos sentimentos alheios. Mas, sem qualquer sacrifício
do seu conteúdo, é possível, também, embalá-los em papel suave, que revele
consideração pelo outro. Esta a nossa regra nº 3: o modo como se fala faz toda
a diferença. V. A REGRA Nº 4: Nós vivemos tempos difíceis. É impossível
esconder a sensação de que há espaços na vida brasileira em que o mal venceu.
Domínios em que não parecem fazer sentido noções como patriotismo, idealismo ou
respeito ao próximo. Mas a história da humanidade demonstra o contrário. O
processo civilizatório segue o seu curso como um rio subterrâneo, impulsionado pela
energia positiva que vem desde o início dos tempos. Uma história que nos trouxe
de um mundo primitivo de aspereza e brutalidade à era dos direitos humanos. É o
bem que vence no final. Se não acabou bem, é porque não chegou ao fim. O fato
de acontecerem tantas coisas tristes e erradas não nos dispensa de procurarmos
agir com integridade e correção. Estes não são valores instrumentais, mas fins
em si mesmos. São requisitos para uma vida boa. Portanto, independentemente do
que estiver acontecendo à sua volta, faça o melhor papel que puder. A virtude
não precisa de plateia, de aplauso ou de reconhecimento. A virtude é a sua
própria recompensa. Eis a nossa regra nº 4: seja bom e correto mesmo quando
ninguém estiver olhando. VI. A REGRA Nº 5: Em uma de suas fábulas, Esopo conta
a história de um galo que após intensa disputa derrotou o oponente, tornando-se
o rei do galinheiro. O galo vencido, dignamente, preparou-se para deixar o
terreiro. O vencedor, vaidoso, subiu ao ponto mais alto do telhado e pôs-se a
cantar aos ventos a sua vitória. Chamou a atenção de uma águia, que arrebatou-o
em voo rasante, pondo fim ao seu triunfo e à sua vida. E, assim, o galo
aparentemente vencido reinou discretamente, por muito tempo. A moral dessa
história, como próprio das fábulas, é bem simples: devemos ser altivos na
derrota e humildes na vitória. Humildade não significa pedir licença para viver
a própria vida, mas tão-somente abster-se de se exibir e de ostentar. Ao lado
da humildade, há outra virtude que eleva o espírito e traz felicidade: é a
gratidão. Mas atenção, a gratidão é presa fácil do tempo: tem memória curta
(Benjamin Constant) e envelhece depressa (Aristóteles). Portanto, nessa
matéria, sejam rápidos no gatilho. Agradecer, de coração, enriquece quem
oferece e quem recebe. Em quase todos os meus discursos de formatura, desde que
a vida começou a me oferecer este presente, eu incluo a passagem que se segue,
e que é pertinente aqui. "As coisas não caem do céu. É preciso ir
buscá-las. Correr atrás, mergulhar fundo, voar alto. Muitas vezes, será
necessário voltar ao ponto de partida e começar tudo de novo. As coisas, eu
repito, não caem do céu. Mas quando, após haverem empenhado cérebro, nervos e
coração, chegarem à vitória final, saboreiem o sucesso gota a gota. Sem medo,
sem culpa e em paz. É uma delícia. Sem esquecer, no entanto, que ninguém é bom
demais. Que ninguém é bom sozinho. E que, no fundo no fundo, por paradoxal que pareça,
as coisas caem mesmo é do céu, e é preciso agradecer". Esta a nossa regra
nº 5: ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer. VII.
Conclusão: Eis então as cláusulas do nosso pacto, nosso pequeno manual de
instruções: 1. Nunca forme uma opinião sem ouvir os dois lados; 2. A verdade
não tem dono; 3. O modo como se fala faz toda a diferença; 4. Seja bom e
correto mesmo quando ninguém estiver olhando; 5. Ninguém é bom demais, ninguém
é bom sozinho e é preciso agradecer. Aqui nos despedimos. Quando meu filho
caçula tinha 15 anos e foi passar um semestre em um colégio interno fora, como parte
do seu aprendizado de vida, eu dei a ele alguns conselhos. Pai gosta de dar
conselho. E como vocês são meus filhos espirituais, peço licença aos pais de
vocês para repassá-los textualmente, a cada um, com toda a energia positiva do
meu afeto: (i) Fique vivo; (ii) Fique inteiro; (iii) Seja bom-caráter; (iv)
Seja educado; e (v) Aproveite a vida, com alegria e leveza. Vão em paz. Sejam
abençoados. Façam o mundo melhor. E lembrem-se da advertência inspirada de
Disraeli: "A vida é muito curta para ser pequena’”.
(Luis Roberto Barroso).
(Luis Roberto Barroso).
Nenhum comentário:
Postar um comentário